Aquele autômato a incomodava. Autômatos a incomodavam antes mesmo de ganhar aquele da mãe, a coisa de bronze e ouro com o rosto da irmã falecida. Sua mãe era incapaz de aceitar a morte da irmã mais nova, a filha favorita, nunca teria forças o suficiente para deixá-la ir, preferiu se enfiar no laboratório dia após dia e criar aquela coisa absurda, do que passar um único momento com a filha que restou. Criar uma nova linha de autômatos, mais modernos e mais funcionais era tudo na cabeça dela agora.
Um baile em homenagem a Nina foi prestado como mandava a etiqueta, Alice se certificou que sua irmãzinha fosse lembrada da forma como convinha a alguém de sua classe social: amigos foram consolados, bebida foi servida e um retrato foi feito. Uma obscenidade de quadro, de mais de três metros, emoldurado com cedro rosa esculpido ao estilo rococó, o favorito da irmã, no centro, a pintura impecável de Nina, a pele branca e pálida de porcelana que Alice nunca conseguiu ter, os cabelos negros ondulados, o rosto arredondado… Nina era linda de se olhar, fofa, adorável, Alice era mais parecida com a mãe: rosto anguloso, cabelo marrom escorrido, a pele branca e sardenta, em outras palavras, a irmã feia, sem graça.
Odiava o retrato. Odiava.
Sua irmãzinha sentada num banquinho em frente ao jardim, com um vestido preto simples, um livro em mãos, um colar medíocre para quem tinha tudo. Tão simples e linda. Alice havia pintado a primeira versão do retrato, quando Nina era viva e elas moravam na fazenda do pai, pediu ao artista do quadro póstumo que envelhecesse o rosto da irmã para a idade de 27 em vez de 17, usou uma foto dela como parâmetro.
O quadro maldito chamava mais atenção que os seus, onde posava com elegância e joias dignas de uma baronesa de sua posição.
— Carla está se dando bem com esse autômato, não é, querida? — a voz de sua amiga a tirou de seus devaneios.
Alice virou o rosto para Cecília, sentada a seu lado na mesa de chá que dividiam. A amiga olhava para a filha de Alice, Carla e a babá autômato com o rosto de Nina.
— Ela sentia falta da tia e minha mãe fez esse agrado — a mentira ardia em sua língua, sua mãe só havia largado aquilo ali com um “dê a Carla”, sem mais explicações — nós estávamos preocupados que pudesse afetar a saúde dela, mas o médico deixou claro que poderia até fazer bem.
E meu marido estava louco para ter Nina aqui em casa de novo, poupou o dinheiro que ele teria gasto mandando fazer um autômato, pensou bebericando o chá, ainda olhando as duas. Carla parecia o pai, a mesma pele branca que se queimava fácil demais em vez de bronzear como a de Alice, cabelo loirinho e cacheado, olhos azuis. Sua filha era uma princesa. E a cansava demais. Sempre fazendo perguntas o tempo inteiro, fazendo birra, incapaz de aceitar um não, exigente, reclamona, não era nada do que Alice tinha imaginado para filha. A maternidade era difícil e ninguém tinha lhe contado o quanto.
— Sua mãe, querida Alice, não vem para o baile que o Marquês de Santos dará? Ele tem muito interesse em se casar com ela, eu bem sei, porque ele me disse — Cecília era uma fofoqueira de carteira assinada, nem suas amigas escapavam de seus mexericos.
Alice pousou a xícara na mesa antes de sorrir para a amiga mais uma vez:
— Minha mãe está passando por um processo de luto terrível, Cecília querida, ela e Nina eram tão próximas… o acidente da minha irmã a pegou de surpresa. Eu sei que já faz um ano, muito para nós, pouquíssimo para ela, transmita ao Marquês minhas desculpas, mas minha mãe não irá.
— Nem você? — se enfiasse uma garfo na garganta daquela criatura abjeta, seria presa?
— Meu marido concorda com o período de luto mais longo, assim como minha mãe, e até que se passe dois e um dia, não vamos a reuniões sociais que não tenham por objetivo honrar os mortos — ah, seu marido, tão triste com a morte de Nina, tão culpado.
— Um cunhado exemplar, eu diria — Uma fofoqueira desgraçada, eu diria foi o que segurou em sua língua, ofender o Condessa de Camboriú não trazia nenhum benefício.
Alice desviou o olhar de Cecília para o autômato mais uma vez, mas agora, aquilo a olhava, a cabeça inclinada, o sorriso eterno esculpido no ouro parecia zombar dela. Aquilo a incomodava, sorrindo amarelo inventou uma desculpa qualquer para tirar Cecília de casa, se fosse para ficar com uma sensação estranha, que estivesse sozinha, sem mais ninguém para ver.
Pediu que o mordomo levasse a amiga até a porta, os acompanhou apenas até a entrada da sala de estar onde estavam. Alice se apoiou na soleira da porta vendo Cecília partir, a sua frente havia um grande espelho no corredor — ela mesma devia ter comprado — se via de corpo inteiro: o vestido de bombazine preto era uma exigência da mãe, o decote fechado até o pescoço e as mangas bufantes até o cotovelo eram restritivas e o camafeu prateado com uma mecha do cabelo de Nina uma lembrança constante da presença fantasmagórica da irmã.
Se não fosse pela mãe, Alice já teria passado seu período de luto, estaria com o elegante vestido vermelho e preto encomendado poucos dias antes da irmã falecer.
Ficava pálida e estranha de preto e prata, mas o vestido vermelho de linho com detalhes pretos e dourados em chamalote a deixava linda, até a cor insossa do cabelo ficava bonita, mas graças a Nina e seu pescoço frágil precisava vestir crepe, algodão e bombazine.
Virou o rosto para não ver mais o espelho, sua feiura no reflexo a revoltava, voltou para o assento no meio da sala, queria terminar seu chá e pegar um livro novo para se distrair. Antes que pudesse se sentar, Carla passou correndo por ela, o autômato logo atrás…
Nunca tinha parado para notar que esse modelo novo andava de um jeito estranho, nada dos maneirismos entrevados que eram exigidos pelo Governo, uma boa diferenciação entre humanos e autômatos, era de se pensar que serem feitos de latão, ouro e bronze ajudaria a diferenciar, Alice conjecturou. Seguiu a filha e autômato até o urinol na casinha do lado de fora, perto da caldeira, sob o uniforme preto e branco de babá, os movimentos daquela coisa eram fluídos, leves, naturais até, mal se ouviam as engrenagens girando dentro dela.
Algumas pessoas mandam colocar próteses no rosto dos autômatos para parecerem mais humanos, colocam perucas e os cobrem inteiro com panos para imitar a pele… Eu daria todo meu dinheiro para derreter Aquilo até virar uma massa de metal brilhante, debaixo de uma árvore, olhando a filha e Aquilo Que Não Era Nina, Alice sentiu raiva da irmã mais uma vez.
…
A senhora da casa dormia um sono inquieto, uma lembrança a mantinha incomodada em seu pesadelo. Lembrava de como estava quente naquela noite, mas o lado da cama do marido estava vazio, de novo, mais uma vez, novamente, outra cama na casa estaria duplamente ocupada. Quanta humilhação uma mulher precisava passar na própria casa até colapsar? Quanto precisava ignorar para manter a paz?
A senhora da casa levantava nessa lembrança, enfurecida, saia pelos longos corredores até o quarto da irmã, os sons abafados a perturbavam além do esperado, nas mãos não trazia nada além de fúria.
A porta aberta.
O grito.
As acusações.
Estava cansada.
Tão cansada.
O marido correu.
A irmã também.
A senhora da casa foi atrás.
Na ponta da escada.
No último segundo.
A raiva.
A senhora da casa empurrou.
A irmã caiu.
O barulho seco do osso partindo.
Morta.
— Foi um acidente — disse a senhora da casa.
Ela sorria.
…
Alice acordou, era apenas um sonho, doce e inquieto. Se inclinou até a mesa de cabeceira para beber um copo de água, o imprestável do marido não estava ali. Ainda na penumbra do sonho, ainda com a mente enevoada se deu conta que não estava sozinha, um zumbido fraco chamava sua atenção na noite silenciosa.
Esfregou os olhos para tentar afastar o sono remanescente. Sua camisola se agarrava a sua pele na noite abafada, respirar era difícil e enxergar também, esticou o braço até a lamparina no balaústre da cama e acendeu, a luz era fraca, mas suficiente, com espanto, viu o que a tinha acordado.
Sentada na poltrona do quarto, do lado esquerdo da porta, estava o autômato, recostado com calma e displicência, as pernas cruzadas sob o uniforme preto e branco de babá, olhava para Alice, o zumbido fraco que ouvia, percebeu, eram as engrenagens, suaves, mas presentes. Outra atualização da grande engenheira que era a mãe delas.
Minha mãe, se corrigiu, apenas minha, isso é um robô, não é Nina. Nina morreu. Eu a matei. Não quis, mas matei.
Aquilo ali na frente dela acompanhava seus movimentos com um mover sutil de cabeça, se a mão de Alice ia para a esquerda, ela também ia, se ficava parada, ela também ficava, mas sempre olhando. A programação estava dando pau? Seus técnicos checaram o sistema operacional e atestaram que cuidar de Carla era o comando principal e se Carla não estivesse no ambiente o autômato desligava.
Mas Carla não estava ali e Aquilo estava acordado.
Ligado, se corrigiu de novo, está ligado, isso não é Nina. É um robô. Apenas um robô.
Levantou irritada, não queria aquela coisa de bronze e ouro olhando para ela, não queria ver o rosto de Nina no latão do rosto ou o sorriso eterno que a acompanhava independente do tom de voz que usava, fosse de repreensão ou castigo. Deus, não queria ouvir a imitação barata da voz de Nina que sua mãe tinha replicado porcamente.
Não se pode ser boa em programar tudo, o escárnio veio antes que pudesse impedir. Alice abriu o guarda-roupa e encontrou uma manta de pele que nunca usava no calor do Brasil, fosse inverno ou não, andou até o autômato com passos decididos, sem vacilar, não se pode vacilar nas coisas ou fica para trás no jogo da vida. Cobriu a Coisa com o pano e a fez levantar, a colocaria de novo no quarto de Carla.
Abriu a porta do corredor vazio e escuro, nenhum funcionário à vista, isso era bom. Talvez não devesse levar Aquilo para Carla, era melhor se livrar logo daquele treco de uma vez. Não queria o autômato em sua casa, não queria Nina em sua casa, tinha se livrado dela uma vez e faria de novo.
Não é Nina, porra, é um robô, apenas um robô e eles podem ser desligados, seu coração batia rápido, Alice suava ainda mais sob a camisola de seda, Nina andava placidamente a seu lado, sem um único barulho ou lamento.
Não é Nina, Nina teria reclamado. Nina reclamava de tudo, não sabia calar a boca sobre nada. Era isso que eu mais odiava sobre ela, reclamava de tudo, de tudo…
Desceu as escadas do fundo, a que era usada pelos funcionários, queria chegar à cozinha para derreter o sistema operacional com fogo. Cada passo sobre o carpete das escadas pinicava em seus pés, o passo do autômato era mais suave que o dela, mas Nina sempre foi melhor em andar. Era melhor até nisso, em andar. Não é Nina!
Finalmente chegou ao fim das escadas.
— Foi aqui! — Aquilo Que Não era Nina falou, a voz saiu abafada debaixo da manta — Foi aqui que você me matou.
Alice a largou num tranco, quase caindo para trás. Como era possível que o autômato soubesse? Ninguém sabia, ninguém, ela havia feito parecer que Nina morreu ao tropeçar e foi tão fácil, tão simples. Que tipo de brincadeira era aquela?
— Eu vou te matar! — Alice gritou, desesperada, chorando, o coração batendo mais rápido do que na morte de Nina, naquele dia estava calma — Eu te matei uma vez e posso te matar de novo!
Estava paralisada, não conseguia sair do lugar, diferente de seu quarto, onde a luz era bem-vinda, ali no corredor, onde apenas a luz da lua entrava pelas janelas, tornava tudo pior, viu Aquilo Que Era Nina tirar a manta de cima de si, a mão dourada parecia desbotada naquela penumbra, se mexia devagar, os batimentos de Alice doíam nos ouvidos, uma sinfonia rápida e destoante da situação. Quando a manta caiu o rosto de Nina parecia mais real nas sombras, a voz que saiu da boca imóvel soou clara como se a irmã tivesse saído do túmulo para falar:
— Você sabia o que ele fazia comigo e nunca impediu, me culpou — Aquilo avançou, um passo lento, Alice recuou, um passo rápido — você me odiava tanto, tanto e eu te amava, eu te amava, eu te amava, eu te amava…
Sem olhar para onde ia, Alice continuou recuando até a porta da cozinha, o chão de pedra arranhava seus pés, não conseguia falar, ou pensar direito, só queria se afastar daquela coisa o mais rápido que seu medo deixasse. Esbarrou na porta da cozinha e só então se virou, mas não era a porta, embora ela estivesse a poucos centímetros, era Luís, seu marido, caído no chão, o corpo de bruços, mas a cabeça virada para trás deixava o rosto à mostra.
— Ele veio hoje, mas eu não aguentava mais o barão, irmã, ele ficou surpreso, é verdade, mas mereceu — o autômato não corria, andava devagar e com calma, o rosto de sorriso eterno olhava para Alice, olhos mortos de latão não emitiam um único sentimento que ela pudesse ler, era apenas luz.
Finalmente o corpo dela pareceu se soltar e Alice correu para dentro da cozinha, a cruzou ligeiro, sabia onde ficava a porta, as chaves, se chegasse até a caldeira, onde a água da casa era aquecida, poderia entrar e jogar Aquilo lá dentro, se a trancasse lá os vapores quentes derreteriam tudo.
Correu para fora, precisava chegar lá, se armar com um dos paus de ferro que os meninos deixavam perto para mexerem no carvão, acertaria o autômato e a jogaria pra morte. Era filha de uma engenheira, sabia onde acertar pra desligar a coisa. Nunca mais teria um robô em casa, iria se casar de novo, tirar a filha dali, abandonar o luto, largar a mãe. Foda-se Nina e sua presença espectral, iria para a Europa.
Corria sem olhar pro chão, Alice não era uma garota burra de romances de banca, ela não ia tropeçar em nenhuma raiz, estava com raiva e conseguia pensar melhor assim, conhecia aquele jardim com a palma de sua mão, correu rápido até a caldeira. Ali dentro fervia sempre. Respirou fundo e olhou para trás, Aquilo Que Era Nina chegava perto dela, caminhando devagar, Aquilo parou, o brilho do ouro e do bronze reluzia na noite iluminada pelos postes de luz. O autômato ergueu a mão esquerda, agitando um molho de chaves na direção de Alice.
Porra, esqueci a chave!
Aquilo Que Era Nina avançou.